Durante todo o século XIX, as mulheres de elite tiveram a silhueta desenhada pelo vestuário em forma de um X (mangas bufantes e seios pronunciados, cintura afinada por espartilhos e saias que tornavam a circunferência de base três vezes o tamanho do corpo), contrastando, assim, com a do homem, cujo corpo, graças à roupa de corte reto, em duas peças, lembrava a letra H, as roupas naquele momento afirmavam o antagonismo entre masculino e feminino, como ressalta Gilda de Melo e Souza (ver nota 1). Uma mudança notável ocorreu por volta de 1920. Os vestidos de corte reto, com saias que variavam entre as canelas e os joelhos, e cintura baixa pouco marcada, colocaram as duas retas inclinadas do X lado a lado, aproximando-o do H desenhado pelo traje masculino (ver nota 2). Remodelaram-se, desse modo, a silhueta das mulheres, as relações de gênero e também os espaços de sociabilidade feminina (ver nota 3).
Entre os fatores que colaboraram para revolucionar a moda ressaltamos, o advento dos esportes na última década do século XIX. A primeira transformação veio por volta de 1890, com a popularização das bicicletas. Como era impossível às mulheres praticarem o ciclismo com saias de longas caudas, muito em uso nestes tempos, criou-se um "traje bifurcado", as blommings (calças bufantes, com elástico nos joelhos). A partir de então, temos uma sucessão de roupas que entram na moda provindas do uso esportivo, tais como o cardigã sem mangas (espécie de paletó de origem militar, confeccionado em lã) , que foi introduzido pelo golfe, ou as saias na altura dos joelhos - criações de Jean Patou, usadas pela primeira vez pela estrela do tênis Suzanne Lenglen em 1921.
Segundo Lipovestsky "Os estilos versáteis e funcionais, sexy, não são separáveis nem da voga crescente dos esportes nem do universo individualista democrático que afirma a autonomia primeira das pessoas; juntos desencadearam um processo de desnudação do corpo feminino e um processo de redução das coações rígidas do vestuário que entravam a expressão livre da individualidade. Os esportes dignificaram o corpo natural; permitiram mostrá-lo mais tal como é, desembaraçado das armaduras e trucagens excessivas do vestuário." (ver nota 4)
A Primeira Guerra Mundial impulsionaria ainda mais a simplificação dos trajes a partir de 1914, principalmente na Europa (centro produtor e criador de moda), onde havia a necessidade da economia de tecidos e da praticidade das roupas, pois, com os homens no front de batalha, a mulher precisava assumir as tarefas masculinas (ver nota 5). A simplicidade transformou-se em moda quando a estilista Coco Chanel apropriou-se das fardas masculinas e deu-lhes um corte mais delicado: substituiu as calças pelas saias e criou o tailleur para o dia e o vestido de corte reto e tecidos leves para noite, evidenciando a silhueta e ressaltando a associação beleza e corpo (ver nota 6).
O novo padrão estético proporcionado pela moda e pelo esporte começa a valorizar o corpo em si, de modo que o cultivo deste e, em especial, de sua beleza começa a deixar de ser o "maior obstáculo para a salvação" (ver nota 7), para iniciar uma era em que o corpo seria cada vez mais valorizado pelas belas formas. A aparência feminina, agora composta de vestidos curtos e retos, demonstra também uma apropriação das linhas do vestuário masculino, observável, com maior clareza, nos tailleurs. Os cabelos à la garçonne e a exaltação da silhueta longilínea aproximam a aparência feminina da masculina, roubando precisão e clareza às fronteiras entre os sexos, o que impele uma redefinição dos papéis sociais do homem e da mulher. Ocorre o que Mary Louise Roberts (ver nota 8) chama de "borrão": as linhas de contorno que colocavam homem e mulher numa incontestável oposição começam a perder a nitidez. Se é importante observar esse esfumaçar de fronteiras, decorrente de transformações econômicas e sociais impulsionadas pela primeira guerra e explicitada pelos novos trajes, é necessário notar que a moda neste momento simboliza ainda uma aproximação com o masculino, que ainda demoraria a ocorrer, (da mesma maneira, também os ideais preconizados pelo traje na década de 20 só iriam se concretizar nos anos 60).
(1) Cf. SOUZA, Gilda de Mello e, op. cit. p. 59.
(2) BONADIO, Maria Claudia. Moda! Um Perigo para as Boas Moças. Estudo sobre a imagem feminina (1900-1930). Campinas: 1996. (mimeo)
(3) Mary Louise Roberts aponta para a aproximação das fronteiras entre os gêneros através das roupas e do comportamento condicionada pela guerra na França. Ver: ROBERTS, Mary Louise, op cit p. 50.
(4) Cf. LIPOVETSKY, Gilles, op. cit. p.76.
(5) ROBERTS, Mary Louise, op. cit. p. 53.
(6) Gabrielle Bonheur Chanel (1873-1971), estilista francesa, que introduziu na alta moda feminina, o uso dos cabelos curtos, das duas peças, bijuterias, adaptou os suéteres masculinos, e em 1920 lançou calças largas para mulheres, baseadas nas bocas de sino dos marinheiros, seguidas dois anos depois por pijamas para a praia.Cf. O'HARA, Georgina, op. cit, p. 74.
(7) KNIBLIER, Yvonne. Corpos e corações. in: História das mulheres no Ocidente. vol. 4. Porto/São Paulo: Afrontamentos/Ebradil, 1995. p. 351.
8) ROBERTS, Mary Louise, op. cit. p. 50.